quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Critérios indefinidos

por Rodrigo Martins

O Senado adia outra vez a votação do projeto de cotas nas universidades
Pela terceira vez consecutiva em sete dias, a votação do projeto de lei que estabelece a criação de cotas sociais e raciais nas universidades federais foi adiada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Sem acordo para aprová-lo com a redação atual e com o Congresso envolvido na discussão do Orçamento, os parlamentares decidiram adiar a decisão para fevereiro do próximo ano, na volta do recesso parlamentar.
Aprovada pela Câmara em novembro, a medida conta com o parecer favorável da senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), relatora do projeto na comissão. “Havíamos costurado um acordo para aprovar o texto na CCJ e encaminhá-lo em regime de urgência para a votação no Plenário”, afirma a parlamentar. “Mas há pressões para mudar novamente a redação. Se isso ocorrer, sabe-se lá quando teremos uma definição”, afirma.
Além da reserva de 50% das vagas em universidades federais aos alunos que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas, o projeto prevê dois tipos de subcotas. Metade das vagas para cotistas seria destinada a estudantes com renda familiar per capita inferior a um salário mínimo e meio. Haveria ainda porcentuais específicos para pretos, pardos e índios, levando-se em conta a proporção de cada etnia nos respectivos estados, de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A subcota racial incidiria tanto sobre as vagas de alunos de baixa renda quanto sobre as demais cotas.
A inclusão de critérios raciais na política de cotas enfrenta, porém, forte oposição. O senador Demóstenes Torres (DEM-GO), por exemplo, antecipa que vai apresentar um projeto substitutivo para excluir esse aspecto do texto. “O que proponho é a reserva de 50% das vagas para alunos de escolas públicas e ponto. Isso já inclui todo mundo. Pobre branco e pobre preto.” Caso a proposta seja acolhida, o texto pode voltar à Câmara para uma nova rodada de discussões.
A novela das cotas no Brasil é longa. O atual projeto começou a ser gestado em 1999. Àquela época, a deputada Nice Lobão (DEM-MA) propôs a criação de cotas apenas para os alunos de escolas públicas, como o senador Demóstenes defende. Desde então, o texto passou por dezenas de modificações, incluindo as emendas negociadas entre os parlamentares. O governo federal conseguiu emplacar a idéia de distribuir essas vagas também por critérios raciais. É de autoria do deputado tucano Paulo Renato Souza, ministro da Educação no governo Fernando Henrique Cardoso, a emenda que prevê a destinação de metade das vagas para cotistas aos alunos com menor poder aquisitivo.
A política de cotas visa combater uma histórica distorção existente na educação brasileira. Do 1,8 milhão de alunos que concluem o ensino médio anualmente, 80% são de escolas públicas. Mas nas universidades mantidas pelo Estado eles são minoria. Para o ministro da Educação, Fernando Haddad, a adoção das cotas pode reduzir esse descompasso e não trará prejuízos a nenhum segmento da sociedade. “Os brancos que estudaram na escola pública têm direitos tão resguardados quanto os negros e indígenas que estudaram na escola pública. Um grupo não está sendo privilegiado em detrimento do outro, já que a distribuição é proporcional”, explica Haddad. “Outro detalhe importante é a aprovação das cotas em um momento de duplicação das vagas de ingresso nas universidades federais.”
De acordo com o Ministério da Educação, as instituições de ensino superior mantidas pelo governo federal ofereciam 127 mil vagas em 2003. Hoje, ofertam mais de 227 mil. Um número pequeno diante da gigantesca demanda, mas o suficiente para compensar ao menos 80% das vagas que podem ser restringidas aos alunos de escolas particulares com a adoção da medida. Das 59 universidades federais, ao menos 16 estabeleceram algum tipo de cota no vestibular. O exemplo que mais se aproxima do projeto hoje em discussão no Senado é o da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Desde 2005, a instituição reserva 45% das vagas aos alunos egressos de escolas públicas. As cadeiras são preenchidas de acordo com a proporção de cada etnia na região metropolitana de Salvador. Os afro-descendentes, por exemplo, têm direito a ocupar 85% das vagas a cotistas.
De acordo com Naomar de Almeida Filho, reitor da UFBA, o modelo dispensa a existência de bancas para verificar a veracidade das autodeclarações raciais. “Todas as etnias têm vagas asseguradas na justa medida. Não faria sentido um branco disputar a vaga de um negro, porque ele enfrentaria uma concorrência muito maior”, comenta. Além disso, o reitor destaca que os resultados obtidos pelos alunos cotistas não decepcionam. “A evasão escolar entre os beneficiados por esta política é menor e o desempenho deles é igual ou superior ao dos demais alunos. Os cotistas são tão capacitados quanto os demais. Prova disso é que a nota média do vestibular aumentou nos últimos anos.”
Na Bahia, cerca de 180 mil estudantes concluem o ensino médio em escolas públicas anualmente e 20 mil, em instituições particulares. Mas, antes de adotar as cotas, apenas um quinto dos alunos da UFBA era de egressos da rede pública de ensino. “Das 4 mil vagas disponíveis no vestibular de 2005, 1,8 mil foram reservadas aos cotistas. Isso significa que apenas 1% dos alunos de escola pública foi beneficiado”, comenta Almeida Filho. “E a universidade ampliou a oferta de cursos noturnos e hoje dispõe de mais de 7 mil vagas. As cadeiras universitárias restringidas aos alunos de escolas particulares naquela época foram completamente compensadas”, diz.
Apesar dos resultados satisfatórios, há muita resistência dentro da academia à política de cotas, inclusive entre representantes do movimento negro. O historiador Manolo Florentino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, é radicalmente contra qualquer reserva de vagas. “O papel da universidade é produzir e disseminar conhecimento, e não promover políticas de inclusão”, afirma.
José Roberto Pinto de Góes, professor do Departamento de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), segue a mesma linha. “Aparentemente, a iniciativa é bem-intencionada porque se liga de alguma forma à nossa eterna ‘questão social’. Mas não resolve o problema real: a ausência de uma escola pública de qualidade para todos. Quem não teve escola boa vai pagar o preço, passando por uma universidade ou não.”
Mesmo entre os que defendem políticas de inclusão, a idéia de estabelecer uma regra única para todas as universidades é vista com certa desconfiança. “Isso fere o princípio de autonomia das universidades”, comenta o físico Leandro Tessler, coordenador do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Por aqui, conseguimos adotar um sistema de inclusão com excelentes resultados e que não é baseado em cotas”, emenda. Em vez de reservar vagas, a Unicamp optou por oferecer pontos extras no vestibular a alunos de escolas públicas. “Ao oferecer esse bônus, o porcentual dos alunos egressos de escolas públicas aprovados na Unicamp (32%) superou o de estudantes com esse perfil inscritos no vestibular (29%).”
Os beneficiários desse mecanismo de inclusão também apresentaram bons resultados acadêmicos. “Em todos os cursos, esses alunos demonstraram uma melhora de desempenho mais acentuada e, em 56% deles, um coeficiente de rendimento superior ao dos demais alunos”, afirma Tessler. “Não é verdade, portanto, a tese de que os estudantes beneficiados por políticas afirmativas empurram a qualidade de ensino ladeira abaixo.”

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