segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Outro olhar sobre a nossa educação

O educador Dermeval Saviani propõe uma nova periodização da escola brasileira, a partir de marcos da própria história da pedagogia
Dividir os tempos históricos, identificando e agrupando períodos segundo uma determinada lógica classificatória, não é tarefa fácil. É preciso ter a visão do conjunto estudado e, sem perdê-lo de vista, observar os detalhes que dão coerência à visão geral. É o que fez, de maneira brilhante e didática, o professor Dermeval Saviani, livre-docente em História da Educação e professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). História das Idéias Pedagógicas no Brasil, livro recentemente publicado, deu tamanha mostra da erudição e vitalidade intelectual de seu autor que lhe rendeu o Prêmio Jabuti 2008 na categoria “Melhor Livro de Educação, Psicologia e Psicanálise”. Na obra, Saviani propõe uma nova periodização da pedagogia brasileira, em quatro grandes períodos, inteiramente escorada em critérios pedagógicos. Nesta entrevista concedida a Ricardo Prado, o autor de Escola e Democracia, pequeno livro que já se tornou um clássico entrando em sua 40ª edição, discorre sobre como ficou a educação brasileira dividida por critérios puramente educacionais.
Carta na Escola: Em História das Idéias Pedagógicas no Brasil o senhor propõe um novo critério para a periodização da História da Educação. Qual seria?
Dermeval Saviani: O problema da periodização é complexo, porque não é um dado objetivo, mas é um recurso que o historiador tem para organizar o tempo. Ele toma determinados marcos para estabelecer a divisão de um fenômeno histórico em diferentes períodos. E, no caso da educação, a tendência predominante era de periodizar a partir da política. Então, é nesse sentido que se costuma dizer que a história da educação no Brasil divide-se em educação no período colonial, no império, no período da República Velha, depois na era Vargas, no período da ditadura militar, Nova República e fase atual. Às vezes se subdivide a educação da era Vargas em Segunda República e Estado Novo. São todos marcos da história política. Essa periodização foi objeto de críticas e uma nova periodização, que começou a surgir pela década de 1970 e 1980, passaria a tomar como referência os marcos econômicos. Ela divide a educação no período do modelo exportador, modelo de substituição de importações etc. Já para a periodização que propus, procurei tomar marcos do próprio processo educacional, marcos pedagógicos. É nesse sentido que discuto, no início do livro, a educação indígena; naquele momento em que os portugueses chegam ao Brasil, também havia educação. Mas, do ponto de vista da educação formal, o marco de origem, embora tenha havido algumas tentativas anteriores por parte de franciscanos, é a vinda dos jesuítas em 1549, que criam, então, as primeiras escolas, os colégios jesuítas: o Colégio da Bahia e, em 1554, o Colégio de São Paulo, no local onde hoje está o Pátio do Colégio, marco da fundação da capital paulista. Esse primeiro período corresponde às idéias da pedagogia tradicional religiosa, que se estende até a expulsão dos jesuítas, em 1759, decretada pelo Marquês de Pombal. O mesmo alvará que decreta a expulsão dos jesuítas substitui os colégios jesuítas pelas aulas régias, as chamadas reformas pombalinas da instrução pública. Assim, 1759 é o marco final desse primeiro período, no qual também identifiquei fases distintas.
CE: Quais seriam as fases do primeiro período?
DS: Há uma primeira fase, que chamei de pedagogia brasílica, que corresponde à proposta do padre Manoel da Nóbrega e que estava mais articulada com as peculiaridades da colônia. Ela se estende até 1599, quando é adotado o ratio studiorum, uma proposta universalista para os colégios jesuítas de todo e qualquer lugar. Isso vai coincidir, mais ou menos, com a morte do padre José de Anchieta, porque os dois principais agentes da educação jesuítica nessa primeira fase foram Nóbrega, que veio chefiando os primeiros jesuítas, e Anchieta. Nóbrega faleceu em 1570, mas Anchieta só viria a falecer em 1597. Dois anos mais tarde, em 1599, entra em vigor o ratio studiorum, que começou a ser elaborado em 1584. Essa segunda fase, que chamo de pedagogia do ratio studiorum, ou a institucionalização da pedagogia jesuítica, vai até 1759.
CE: Com o fechamento das escolas jesuíticas, começaria o segundo período pedagógico brasileiro. Ele seria dominado pela pedagogia leiga?
DS: Ele abriu espaço para a pedagogia tradicional leiga, mas é claro que as idéias religiosas não desaparecem, elas coexistem com a orientação leiga em várias circunstâncias e até disputam a hegemonia. Essa disputa, aliás, vai gerar no final do império a questão religiosa. Depois, com a República, a educação é declarada leiga. Portanto, aboliu-se o ensino religioso nas escolas públicas. Mas a Igreja continua lutando para restabelecer e vai conseguir isso em 1930. Esse segundo período vai se estender de 1759 até 1932. Veja que eu não tomo nem o marco político de 1822, ano da Proclamação da Independência do Brasil, nem a República proclamada em 1889, nem a revolução política de 1930. Considero o ano de 1932 porque é o ano do lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Então, a pedagogia nova, a concepção humanista moderna de educação, ganha visibilidade com o manifesto, embora ela estivesse sendo articulada um pouco antes. Nesse segundo período, eu também distingo duas fases: a primeira é a das aulas régias, das reformas pombalinas, que vai até 1827 – e aqui também não é 1822, mas 1827 porque foi o ano em que foi aprovada a chamada Lei das Escolas de Primeiras Letras. Até então, a concepção das aulas régias é que orientava toda a organização da instrução pública no Brasil. A partir de 1827 começam a haver algumas alterações, influenciadas pelas idéias do ecletismo, do positivismo e do liberalismo. Elas passam a orientar a educação e vão se estender ao longo da Primeira República, até 1932. De 1932 a 1969 vem o período da predominância das idéias novas e aqui é que vem uma diferença entre duas formulações que fiz ao longo da pesquisa: na primeira formulação dividi em oito períodos, porque eu distinguia de 1932 a 1947, um período; depois, de 1947 a 1961 outro, e de 1961 a 1969 um terceiro período distinto. De 1969 a 1980, um novo período, de 1980 até 1991, outro período e, finalmente, o atual momento iniciado em 1991.
CE: E por que essa divisão não agradou ao senhor?
DS: Chamou-me a atenção o fato de termos períodos curtos aqui e períodos longos no passado. As hipóteses seriam: períodos curtos agora porque a evolução é mais rápida ou, a outra hipótese, justamente porque é mais próximo de nós, temos os detalhes mais presentes e, nesse sentindo, somos levados a fazer distinções e a não percebemos claramente a diferença entre o que é estrutural e o que é conjuntural. Já em um período histórico sedimentado, é mais fácil você perceber isso. Então, eu reformulei essa divisão porque verifiquei que, na verdade, os três períodos intermediários são marcados pela pedagogia nova. Entre 1932 e 1947 há um momento de equilíbrio, em que ela está em luta com a pedagogia católica. Quando em 1947 se constitui a comissão que vai elaborar o projeto da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação como decorrência da Constituição de 1946, vai se notar que entre os educadores mais proeminentes da época, só havia dois católicos na comissão: o padre Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima. Os outros integravam o movimento renovador: Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Almeida Júnior, entre outros. Por isso tomo 1947 como o marco da predominância dessa pedagogia nova, até 1961, quando acontece a aprovação da primeira LDB. Entre 1961 e 1969 temos o período de crise da pedagogia nova e de transição para a pedagogia tecnicista. A implantação da LDB vai se dar a partir de 1962, até que, em 1969, as mudanças exigidas pelo regime militar vão adquirir institucionalidade com a implantação da reforma universitária. A lei foi aprovada em 28 de dezembro de 1968, mas em 11 de fevereiro de 1969 foi aprovado o Decreto 464, que regulamentou sua implantação. Do ponto de vista pedagógico, um fato importante ocorrido neste ano foi o Parecer 252, que reformulou os cursos de Pedagogia, introduzindo as habilitações técnicas. Por isso o fim do terceiro período é em 1969.
CE: Qual é a importância do manifesto dos pioneiros da educação nova de 1932?
DS: Eu costumo dizer, que esse manifesto, mais do que um manifesto em defesa da escola nova, é em defesa da escola pública. Acho que a grande importância dele é, justamente, se dirigir ao povo e ao governo e conclamar as autoridades a organizarem o ensino na forma de um sistema nacional que pudesse atender a toda a população.
CE: É a primeira vez em que se fala em educação de massa?
DS: Em termos gerais, eu diria que sim. Porque antes nós já tínhamos, nos principais países, a organização de sistemas nacionais de ensino visando universalizar a escola primária. Que é o caminho para erradicar o analfabetismo.
CE: Nessa época em que o Brasil ainda tinha um alto grau de analfabetismo, países como a Argentina e o Uruguai estavam bem à nossa frente, não é verdade?
DS: Exatamente. Porque a maioria dos países criaram seus sistemas nacionais de ensino na segunda metade do século XIX. Argentina, Uruguai e Chile também fizeram isso, enquanto o Brasil foi se atrasando.
CE: Qual foi o impacto do golpe militar na educação brasileira?
DS: O golpe teve um impacto forte no sentido de subordinar a educação ao projeto político instaurado pelos militares. Há uma ruptura política, se instaura um regime de força, mas para garantir a continuidade socioeconômica, porque o risco que se temia é que a continuidade política da democracia populista viesse a provocar uma ruptura socioeconômica. As forças conservadoras temiam perder o poder. O golpe, ao estabelecer essa ruptura política, rearticula a educação segundo a nova orientação. O empresariado teve um papel importante, através do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), que foi um instrumento ideológico da burguesia criado para dar respaldo ao golpe e que formularia as propostas de política educacional. Ele organizou em 1968 um grande seminário de educação, chamado “A educação que nos convém”, no qual já existe o embrião das idéias básicas que se fizeram presentes na proposta de reforma da educação universitária e na Lei 5.692, de 1971, que vai instituir o ensino profissionalizante.
CE: O ciclo da pedagogia nova, segundo sua classificação, terminaria com a reforma universitária de 1969, ponto de partida do projeto da pedagogia tecnicista. O que seria essa pedagogia?
DS: O que eu chamei de concepção produtivista vem da ênfase na busca de produtividade. A própria legislação do período militar tinha esses princípios básicos, o princípio da eficiência e produtividade, da racionalidade, da não duplicação de meios para fins idênticos. E essa preocupação com a produtividade se mantem ainda hoje. Mas com alguns matizes. A fase até 1980 é a hegemonia da visão tecnicista, que foi implantada como pedagogia oficial do regime militar. Neste ano acontece a primeira Conferência Brasileira de Educação, na qual as críticas à educação do período militar, inspiradas na concepção que chamei de crítico-reprodutivista, que mostrava o papel da educação como reprodução da situação dominante, do status quo, começam a ceder espaço para a busca de alternativas. A Conferência de Educação de 1980 tinha a preocupação de encontrar alternativas, um outro tipo de orientação que se contrapusesse à oficial. A década de 1980 será uma época muito dinâmica, muito rica para o movimento educacional, na qual surgirão inclusive várias daquelas pedagogias contra-hegemônicas.
CE: O senhor, aliás, não deixa de mencionar em seu livro, mesmo nos outros períodos, essas pedagogias minoritárias...
DS: Sim, mas em 1980 elas produzem uma ilusão de hegemonia, porque nas outras épocas elas são contra-hegemônicas e ficam em segundo plano. Como, por exemplo, as idéias socialistas que surgem na segunda metade do século XIX, depois as idéias anarquistas, de modo especial, na segunda e terceira décadas do século XX, as idéias comunistas nos anos 1920 e 1930, todas são claramente subordinadas, fazem a crítica e se contrapõem à situação dominante, mas não têm força para disputar a hegemonia. Agora, em 1980, os movimentos dos educadores, esses ensaios contra-hegemônicos, como a pedagogia libertadora de Paulo Freire, as pedagogias da educação popular, a pedagogia histórica-crítica, se difundem, circulam e até se acreditou que tinham mais força que as demais, mesmo porque o regime militar vinha sendo desacreditado e a pedagogia oficial recebia críticas de todos os lados. Mas, na verdade, o que eu revejo por meio de uma análise histórica a posteriori, é que essa hegemonia se deu apenas no plano da discussão entre as lideranças educacionais, no campo acadêmico das universidades. Do ponto de vista da organização das escolas, do funcionamento das grandes redes públicas, administradas pelas secretarias de Educação de vários estados e pelo Ministério, as idéias que permaneceram em vigor são de fundo produtivista. A orientação tecnicista foi relativizada, sofreu algumas variações com a chamada redemocratização, por conta de que agora não havia mais regime ditatorial, quando as coisas eram baixadas de modo autoritário. Os governos de oposição, do então MDB, introduziram alterações secundárias naquela estrutura que permanecia a mesma; do ponto de vista democrático também houve certo democratismo, mas não a democracia propriamente dita. E as propostas também eram feitas em nível de gabinete, só que diziam que eram encaminhadas para que os professores se manifestassem. Mas como os professores não tinham condições de se manifestar, o raciocínio era de que já que não houve uma contraproposta, então se implanta.
CE: Como o senhor definiria a pedagogia tecnicista?
DS: Percebi um fio condutor, comum, que vem do final da década de 1950 com a teoria do capital humano, a partir da elaboração dos trabalhos do economista Theodore Schultz nos EUA, que enfatizava a importância da educação como fator de desenvolvimento.
CE: O Banco Mundial também investiu pesadamente nessa idéia, não?
DS: O Banco Mundial e a Unesco também. A Unesco era mais ambígua porque a ONU tinha de conciliar nações dos mais diferentes matizes, como a União Soviética e os países do Leste Europeu. Mas havia um vetor, que vem lá da década de 1960, em defesa da educação permanente, da educação continuada, que depois se traduz no relatório de Edgar Faure, que presidiu, em 1972, aquela grande comissão da Unesco, que produziu o relatório publicado com o título “Aprender a ser”. E, mais recentemente, o relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, presidida por Jacques Delors, publicado em 1996 com o título “Educação: um tesouro a descobrir”, cujo foco é o lema “aprender a aprender”.
CE: Queria fechar a entrevista com algum comentário sobre a arquitetura educacional brasileira a partir da Constituição de 1988 e da atual LDB.
DS: A Constituição de 1988 foi importante enquanto marco político, ao fixar o direito à educação e à gratuidade do ensino em todos os níveis. Enquanto marco jurídico ela é relevante na medida em que valoriza e dá instrumentos para se exigir uma educação acessível a todo indivíduo. A LDB não poderia contrariar a Constituição. Ela reafirma os princípios constitucionais. A LDB, no entanto, foi formulada em outro contexto, no qual a subordinação da educação aos interesses de mercado, e regulados por um Estado que também está articulado com os interesses de mercado, já se faz presente. Nesse sentido, o projeto de LDB que chegou a ser aprovado na Câmara, mas não passou no Senado, estava mais em consonância com o espírito da Constituição de ampliação de direitos, de efetivação desses direitos, de uma democratização das decisões.
por Ricardo Prado

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